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  Um mês
parte dois de dois

por Fabio Satoshi Sakuda, F/X
xsakuda@hotmail.com

 

   Por causa disso que eu me matei? Por causa da traição de minha esposa?Minha vida era tão perfeita, meus filhos ainda precisavam de mim. Eu podia recomeçar. No entanto preferi morrer. O que me levou a isso? Eu nunca me mataria por causa de uma decepção. O suicúio Efraqueza e eu nunca faria uma coisa assim.
   Não, eu não morri sEpor causa de minha esposa. Tem mais alguma coisa. SEpreciso me lembrar. Mas se eu consegui esquecer dessa traição, então como não esquecer alguma outra coisa?
   Eu lembro do Hospital onde trabalhava. Alguém deve saber de alguma coisa lE Meus melhores amigos estão lE Mas quem? A quem eu contaria algo tão alarmante que me fosse um motivo pra morrer? Tem tanta gente que eu conheço da faculdade. Tantos outros que me tornei amigo durante o periodo de residência.
   Vamos arriscar. Qualquer um. Vamos começar pelo...
Eu detesto isso! O cafEestEhorrú“el, aguado. Se quisesse essa porcaria eu tomava num boteco! Me recuso a dar mais um gole nisso.
Parece que deu tudo errado nessas duas últimas semanas. O cafEsEsai ruim, minha mulher pede a separação e diz que quer ficar com a casa e eu ainda perco meu maior cirurgião. Maldita hora em que ele se jogou contra aquela parede! Os negócios vão mal...
   TEachando que devia fazer o mesmo. Caramba, com tanto cobrador batendo a porta, inclusive os advogados daquela piranha com quem me casei! Sabia que não devia me casar mais uma vez! Quando o primeiro dEerrado, o segundo também, vocEdeve esquecer esse negócio de casamento. É melhor sEficar no sexo mesmo. Se não depois eu preciso passar por outro processo de separação! Chega, essa cadela foi a última a me roubar! Agora sEvou pegar uma mulher pra traçar. Nada de querer impressionar, nem namorar. É cama, vadia, senão cai fora!
   Desgraça. Essa parcela vence hoje.
   O diretor não parece ser a pessoa exata. Mas ele devia tomar cuidado. Lembro que ele teve um ataque na úlcera a alguns meses. O próximo pode ser pior se ele não se cuidar.
   Sabia que isso ia acontecer. Me trocaram de horário sem eu saber! Isso sEacontece comigo! Eu devia falar umas boas praquela vaca. Acha que as enfermeiras devem ser suas escravas? SEpor que eu não tenho famú‰ia pra cuidar não significa que eu tenho que ficar disponú“el vinte e quatro horas por dia.
   Se eu falar alguma coisa pra ela, tEferrada. Melhor continuar aguentando. Eu adorava quando os cirurgiões me pegavam pra trabalhar lE Era mais pesado, mas eles sempre me livravam a barra depois. E eu nunca tinha que pegar esses horários ruins. Tava tudo sempre marcadinho, eu fazia e pronto. Eles davam um jeito de me deixar de descanso.
   Tinha aquele que se matou. Ele era legal, o hospital todo falava dele. Famoso, o homem. Apareceu na tv, vivia ajudando os pobres. Ele não existia. Era um homem muito bom. Não acredito que tenha se matado. Acho que alguém matou ele. É, isso acontece todo dia, num E Ele era médico, algum paciente deve ter falado alguma coisa pra ele. Algum segredo do governo, sei lE Dai fizeram ele morrer. O coitado tinha uma vida tão boa. Uma esposa que era chique, toda bonita e simpática. Viviam se agarrando por aE E tinha os pivetinhos, todos a cara dos pais, e tão espertos. Quem tem filhos assim? Hoje em dia os muleques sEsabem se meter em crime e as meninas engravidam antes mesmo de saber o que Ea vida. Tsc.
   Que desperdú€io, esse homem.
   Ela não devia ficar se metendo na vida dos outros. O que eu tava fazendo aquele dia? Porra, o cara era meu amigo, naquele dia eu tava em casa, não podia saber que ele ia se matar!
   Eu devia ter ficado com ele quando ele descobriu. Mas não deu, eu precisava dar um tempo com a patroa! Eles não podem me cobrar isso. Eu bem que queria que ele não tivesse morrido, podia atEter evitado. Mas aconteceu, não foi culpa minha. Eu sei que ele estaria vivo se eu tivesse conversado com ele, esfriado a cabeça dele.
   Mas todo mundo sabia como ele andava. Tava quase normal, mas todo mundo percebeu que ele tava com problemas. Era a culpa batendo na porta dele. O cara sentia culpa daquilo.
   Mas eu sempre dizia, esquece, cara. Essas coisas acontecem com todo homem, vocEnão Ede ferro, cara. Mas ele era muito direito, acho que nunca fez nada errado na vida. Errar daquele jeito pode ser normal mas pra ele era imperdoável.
   É melhor parar de pensar nisso. Senão eu não vou conseguir trabalhar.
Amor Ealgo tão incompreensú“el. Um dia vocEtEgostando da garota, no outro, puf! Ela aparece com um short estranho, uma camiseta do PiuPiu e vocEsaca que os peito dela são duas coisinhas minúsculas, nada comparado com aqueles peitos rijos da noite passada. Fora o fato de que ela ronca! Nunca tinha visto mulher roncar. E essa ronca como uma porca! Parece uma britadeira. DaEvocEpára e pensa: onde eu tava com a cabeça quando fui pra cama dessa coisa?
   Uma delas tava entrando e saindo dela. Talvez seja isso, sexo. É, claro. Eu jEtava uma semana sem transar. É, claro, foi sEsexo, aquela piranha.
   PE eu queria encontrar uma mina decente pra nào precisar passar vontade. Pintou aquele tesão, eu volto pra casa e ela jEtEempinadinha esperando. Aquele troxa que se matou que tinha sorte e nào sabia! Com uma mulher gostosa daquela eu ia varar ela toda noite! Fiquei sabendo que foi isso que deixou ele puto. Tavam varando a mulherzinha dele. He. Queria ver a cara do desgraçado quando viu os amiguinhos dele fazendo a festa naquela piranha.
   Viu, ele se achava espertão, achava que tudo era do jeito dele. DaEvai a mulher e bam! O mundo dEum tabefe na cara do safado! Me disseram que um dos caras tava filmando tudo. Eu dava uma grana legal pra quem me arranjasse essa fita. Mas parece que a mulher quebrou a fita e jogou no lixo. Uma pena, aquilo devia ser demais.
   SerEisso? Meus amigos estavam envolvidos. Mas isso não parece ser a razão. Tem mais uma coisa. E eu vou descobrir.
   Flores. Não acredito que ele me mandou flores. Eu o amava. Nós diziamos que ficarú}mos juntos. Era tão difú€il pra ele admitir que estávamos apaixonados. No entanto ele me mandou estas flores no dia em que fazemos três meses. JEtinha comprado com antecedência. Chegou depois dele morrer. Meu Deus, e esse bilhete.
   "Nada pode nos separar. Te amo atEa morte"
   Por que vocEme fez isso? Por quE.. vocEmorreu quando nós finalmente ú}mos ficar juntos?

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   Acho que esse estado em que me encontro me faz esquecer dos detalhes da minha morte. A cada dia eu descubro mais, parece que vou passar meu último mês caçando respostas pra minha morte. SerEque Etudo? SerEque o que eu descobri jEEsuficiente?
   Eu me matei por que eu sentia culpa por trair minha mulher e por que eu a vi me trair numa orgia. Senti que era um castigo por ter feito aquilo a ela. Droga, eu sei que isso não Etudo! Eu não me mataria por tão pouco! Minha vida era perfeita, todos me admiravam, eu tinha uma mulher linda, três filhos pra me orgulhar, o emprego com que sonhei, tudo que eu sempre quis!
   Eu preciso descobrir o que aconteceu. Eu sei que tem mais. Somente os fracos se suicidam. Eu sempre soube disso, sempre foi uma máxima absoluta sobre minha vida. E eu nunca fui fraco. Sempre lutei pra ter o que queria, fosse o amor da garota que eu havia me apaixonado ou o cargo de chefia no hospital. Sempre fui um vencedor por minhas próprias forças. Nunca precisei pedir a ninguém. Nunca precisei dizer que consegui algo graças a Deus.
   Deus... ele sEme trouxe a isto! SEme amaldiçoou com esta maldita condição! Eu quero morrer em paz! Por que não podia simplesmente morrer e inexistir?
Chega de chorar. Agora eu preciso de algo pra me acalmar. Preciso descobrir o que me matou.
   Eu ainda estou confusa com tudo isso. Meu marido não devia ter morrido dessa forma. Eu ainda o amava.
   Mas tudo estava tão estranho. Ele parecia sempre cansado, não era o mesmo a meses. Nós nos deitávamos e dormú}mos. Ele me dizia eu te amo como se fosse obrigado. E sempre que queria ser carinhosa com ele, eu era repudiada. Hoje não, ele dizia, estou cansado. E ficou nisso por mais tempo do que eu aguentava.
   Por isso eu o trai. Eu não me casei pra ser celibatária! Sei que o amava, mas precisava do carinho que ele não me dava mais. Por quEvocEfoi tão egoista, eu me perguntei quando soube da morte dele. Se eu não tivesse sido tão idiota. Fraca.
   Ele vivia me dizendo que eu não podia me deixar enfraquecer. Fraqueza era a pior coisa pra ele. Quando seus pais morreram, ele segurou o choro. Quando as coisas iam mal, ele não se abalava. Era mais que ter esperança. Ele parecia não querer ser derrotado. Nem parecer derrotado. Não queria ser mais o último a ser escolhido no futebol, ou o que tinha menos amigos. Ele me contava sobre o passado dele, quando ele decidiu deixar de ser fraco. Não podia mais deixar a vida ganhar dele. Juntou toda a coragem e passou a fazer tudo pra crescer. Dizia que eu havia sido uma de suas primeiras conquistas. Disse que era apaixonado por mim a anos, mas sua fraquesa o impedia de falar comigo. Ele se tornou um homem forte e foi me levar aquela rosa. E depois ficamos juntos pra sempre. Quer dizer...
   Eu o desapontei. Mais que ter traido nossa promessa do casamento, eu havia traido a maior verdade da vida dele. Eu era fraca.
   Ele sempre tentava me fazer parar de fumar. Cigarro faz mal, querida. É, ele sempre me falava pra largar meus vú€ios. Dizia que eu precisava lutar pelo que queria e não me render a porcarias que não serviam pra nada.
   É verdade. Eu o traEe por uma fraqueza daquelas que ele abominava. Meu calcanhar de aquiles foi a carne. Eu nunca poderia satisfazElo. Quando éramos jovens, eu era fútil demais. Quando nos casamos, eu não sabia aguentar a barra dos nossos primeiros anos, antes de ele ser um cirurgião.
   Essa fraqueza. Era isso. Eu havia me cansado de ver ela com seus vú€ios. Não suportava aquilo. Por isso comecei a trair. Eu queria uma mulher forte, que pudesse me acompanhar de igual, não como uma concubina. Mas eu ainda a amava. Sei que sim. Ela era o amor que eu sempre queria. Não precisava de outra.
   Naquela noite, no bar, depois de pegar ela com três rapazes, eu fiquei pensando em tudo o que havia feito. Eu tinha o que queria, minha força havia me dado tudo o que eu precisava. Mas eu fui fraco. Me rendi Eambição e quis mais.
   Havia decidido esquecer tudo. Eu ia voltar pra ela. Seria sincero. Irú}mos conversar sobre nossas traições e tentar nos perdoar. Quem sabe tudo voltasse ao normal e nossas preocupações sEse resumiriam aos nossos filhos. Envelhecerú}mos juntos, talvez numa bela fazenda. Nossos filhos continuariam o legado. E morreriamos sem precisar de nem mais um mês, pois teriamos vivido tudo que precisávamos viver.
   Então, tomei um cafE esperei uns instantes e fui pro meu carro. Voltava pra casa decidido a fazer o que imaginara. E passava por uma estrada, a curva era muito fechada. De repente eu vi algo. Tentei frear, mas meus reflexos ainda estavam lentos. O carro estava mais rápido do que eu pensava. Eu perdi o controle e sEpude fechar os olhos.
   E acordei no dia seguinte, no corpo de uma garota...

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   EstEtudo escuro e o cheiro de madeira ainda Enovo. Sinto que o ar Efraco, apesar de não respirar. Meus dedos estão moles, a carne estEpesando. Eu abro os olhos com esforço, tento em vão me debater. Meu corpo jEestEem deterioração, não hEcomo me levantar. A dor de tentar fazer algo Eterrú“el. Esse corpo morto me expulsa, não me quer de volta. Ele não tem mais condição de continuar e não me quer. Mas eu sou forte. A dor não pode me impedir. Eu tenho que voltar Pros meus filhos, pro meu amor.
   Eu junto toda força que posso e consigo mover um braço. Ele bate na tampa do caixão. É inútil, mesmo se alguém ouvisse o som debaixo de sete palmos de terra, acredito que não acharia que hEalguém se debatendo dentro de um caixão.
   Preciso parar de me desesperar. Sei que Erúiculo pensar em retomar meu corpo. Não hEmais o que fazer. O que eu pensei? Chegar em casa com um corpo em decomposição. Onde eu estava com a cabeça?
   Eu não tenho mais cabeça. Nem cérebro. Eu não tenho nada.
   Eu estou morto. E preciso encarar que acabou.
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   Eu choro ao ver meu filho com sua primeira namorada. Penso que não o verei se casar e nem terei o prazer de pegar um neto em meus braços. Minha esposa cuida de todos e os faz parar de pensar em mim. Eles sorriem, sentados Emesa de jantar. Meu caçula parece me imitar, sempre falante, sempre contando piadas e histórias.
   A consciência de meu atual estado me faz ver as coisas com clareza. HEmuitos outros na situação em que eu estive. Eles ainda não podem ver. Eu não me importo mais com o que vejo. SEos impeço de tomar minha familia. Sei que sEposso fazer isso durante esses últimos dias. Mas eu sempre fiz o possú“el pra cuidar deles. Se pudesse, cuidaria pra sempre.

   Estão todos juntos na varanda. Eles sentam no chão e eu os observo ao longe. Eles olham para o Sol a se pôr, calam as vozes mas eu ouço seus pensamentos. Lágrimas correm suaves e um abraço Ea última coisa que vejo. O Sol se pôs. Adeus.

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Epara aqueles que sempre olharão por mim.