Um m黌
parte um de dois

por Fabio Satoshi Sakuda, F/X
xsakuda@hotmail.com

   Como n縊 reparei antes! Eu me tornei uma garota!! Como? Eu.. eu sei que quase morri mas n縊 sei o que aconteceu depois. Tudo aquilo que sonhei, que parecia t縊 real. O que aconteceu comigo? ﾉ estranho ver meu corpo... ver este corpo!
   Meu peito est・maior e mais macio, meu rosto tem um tra輟 mais afeminado, minhas m縊s s縊 delicadas. O pior ・n縊 sentir nada balan軋r abaixo da minha cintura!! Eu o perdi!
   Me sinto um eunuco. Na verdade, eu sou eunuco, n縊 tenho meu... quem fez essa coisa em mim?
   Ainda nu... nua, eu me sento na cama. Fico encarando a mim mesmo e tentando imaginar o que me faria isso. Nunca achei que diria uma coisa dessas mas, eu estou me sentindo atraido pelo meu pr�prio corpo. Isso me d・ao mesmo tempo uma sensa鈬o de... excita鈬o e de pavor. Eu sou um homem! N縊 uma garota, isso est・errado!
   De repente, como se em resposta ao meu pensamento, lembro de algo de meu passado. Eu estou nu... nua como agora. Deitada num colch縊 macio. E ele est・comigo. Seu bra輟 forte me enla軋 como se nunca fosse me soltar. Sua perna se movimenta de encontro a minha. O calor de seu corpo me envolvendo e aquecendo o quarto nessa noite t縊 fria. Ele sussurra em meu ouvido, diz que me ama. Eu sinto sua boca massagear meu pesco輟. Sinto suas m縊s acariciar meus seios. Mas como se eu nunca tive seios antes desse dia!!
   Ent縊 como eu ainda consigo sentir tudo em meu corpo? Como posso ainda ser tocada por aquelas m縊s carinhosas. Sentir seus olhos a me fitar. E algo cresce em encontro a meu ventre. R��ido e muito quente. Me toca como meu amor. Eu sinto como se estivesse... pirando! S・pode ser! Afinal, isso que eu t・vestindo ・uma menina ou uma pequena prostituta? N縊 sei, mas por ele eu seria tudo. Seria a vadia e a santa, couro e plumas, palmadas e carinhos. Faria tudo pra deix・lo feliz. Amaria cada momento de nossa vida.
   Mas eu acordo desse sonho louco. Sei que n縊 foi tudo t縊 lindo assim. Sei que n縊 devia ter feito isso. Por que depois, ele me deixou. Se n縊 tivesse me entregado aquela noite, eu ainda o teria pra me aquecer em noites frias. Ainda estaria com meu amor. Mas meu amor ・minha esposa. Meus filhos. Eu nunca amei um homem... como amo este.
   Ent縊 ・isso. Eu n縊 morri. Isso n縊 aconteceu. Foi s・um sonho. E eu sou mesmo apenas uma garota. Mesmo tendo essas lembran軋s t縊 fortes em minha mente, eu sou s・uma garota. Deus, ent縊 por que estou t縊 triste de saber que essas lembran軋s s縊 falsas?
   Deus..?
   Pera・ eu n縊 era c騁ico?

   Acho que esse sonho me deixou mesmo muito confusa. N縊 consigo mais dicenir o real da fantasia! Mas ・mesmo muito dif��il esquecer que n縊 tenho mais uma esposa, tr黌 filhos e uma vida toda j・vivida. Me d�i o peito s・de pensar que n縊 posso mais amar meus filhos simplesmente por que eles jamais existiram. E minha mulher tamb駑.
   Me visto e pego minhas coisas. Detesto me atrasar pro col馮io. Quando estou descendo a escada, sinto cheiro de ovos com bacon. Meu pai ainda est・em casa. Vou poder chegar mais r疳ido pegando uma carona com ele.
   Chego no col馮io. Meu pai se despede de mim e eu espero ele sumir de vista. De repente, sinto vontade de fumar. Logo eu, que sempre fui anti-tabagista. Ponho minha m縊 na bolsa e encontro um ma輟 de cigarro. O isqueiro est・dentro. Que estranho, eu nunca fumei antes! Quer dizer, minha outra vida nunca fumou. Eu fumo desde os quatorze, quando um namorado me fez dar uma tragada no cigarro dele. Estranho eu ter me esquecido assim. Acho que ainda estou meio atormentada por aquele sonho.
   Enquanto acendo o cigarro, vejo minhas amigas se aproximarem. Sei que terei que ouvir elas me dizendo que meu namorado era um babaca, que n縊 presta e que todos os homens s縊 iguais. ﾉ o protocolo da separa鈬o. Sempre dizemos isso a uma amiga na mesma situa鈬o que a minha. S・que nem sempre a garota ama o rapaz como eu o amava.
   Entre piadas e coment疵ios de como minha saia combinava com minha blusinha perfeitamente, eu dou uma leve espiada no decote de uma das minhas amigas. Ela tem os seios fartos, com um balan輟 enlouquecedor. Percebo que estou querendo toc・los quando dou uma olhada mais calma. Ela parece n縊 ligar pros meus olhares. Pois eu s・penso em ir para um canto com ela e devor・la. Imagino seus gemidos em meus ouvidos.Leves gritinhos enquanto eu exploro cada detalhe secreto de seu corpo. Antes que possa perder a cabe軋, ou輟 o sinal. A primeira aula vai come軋r.

   No caminho de volta, eu penso em ligar pro meu namorado. Penso em dizer que o amo muito e perguntar como foi seu dia. Penso, na verdade, que ainda o namoro, por que ele j・me deixou. Mas meu cora鈬o n縊 entende.
   Preciso esquec・lo. Acho melhor tentar entender o que sentia por minha amiga. Eu nunca havia tido estes desejos homossexuais antes. T・certo que eu a achava bonita, mas nunca senti desejos por ela. Mas hoje eu me sento do seu lado, para poder olha-la durante as aulas. Enquanto o professor de matem疸ica tenta dar sua aula, eu a imagino nua, dan軋ndo como uma pequena piranha sobre a carteira do professor. Em geografia, s・aprendi que a desejava rebolando em meu colo. E v・la de shortinho na aula de Educa鈬o Fisica, me deixou t縊 excitada que quase a ataquei. Eu estava atraida por outra garota!
   Quando entro em casa, minha m綟 me avisa que o almo輟 sai em dez minutinhos. Subo para me trocar.
   Estou tirando minha blusa quando olho de relance pro espelho e tomo um susto. ﾉ o meu rosto. Meu rosto de homem!
   Olho novamente e s・vejo minha face delicada, com batom nos l畸ios. Foi s・um lapso. Mas eu acho que tudo isso n縊 ・s・um sonho. Acho que ・muito mais. Deve ser alguma vida passada. Isso explicaria tudo, n縊 ・ Dizem que as pessoas t麥 vis�es de suas vidas passadas nos sonhos. De repente, ・isso.
A salada est・muito gostosa. Minha m綟 finalmente acertou o tempero. Enquanto comemos, ou輟 a tv ligada na sala. O notici疵io sempre fala de acidentes, ・at・comum. Mas eu me sinto impelida a ir pra frente da tela ver com mais aten鈬o.

   O motorista dirigia embriagado. Seu carro estava muito mais veloz que o permitido e a curva veio mais r疳ido que qualquer pensamento do infeliz. O carro saiu da pista e bateu de frente a um muro. A batida foi t縊 violenta que o tal muro desabou sobre o carro. O rep�rter diz que a morte foi instant穗ea.
   Logo depois aparece a imagem da vi�va. T縊 bela, com os olhos molhados, cheios de tristeza. A indigna鈬o em ter que viver s・ Seus tr黌 filhos tamb駑 choram, abra軋dos a m綟. Por um instante, eu me perco naquela cena. Meu cora鈬o se aperta e p疵a enquanto eu ou輟 aquela voz. ﾉ a mesma que tantas noites declarou seu amor a mim. ﾉ a mesma que disse sim quando a pedi em casamento, ajoelhado em frente ao lago onde nos conhecemos.
Eu morri mesmo. Agora tenho certeza disso.

   Corro o mais r疳ido que posso. Este corpo ・bem mais r疳ido que o antigo. Antes eu tinha problemas na hora de correr. Vida sedent疵ia, voc・sabe. Mas mesmo correndo muito, esta garota n縊 ・t縊 r疳ida quanto eu preciso.
   Meu corpo verdadeiro vai estar a sete palmos da terra se eu n縊 impedir. Mas como? O que fazer? Ser・que minha mulher aceitaria que eu dissesse que me tornei uma garota? N縊, no m�喫mo eu seria ridicularizado por todos e detestado pela minha pr�pria fam�永a. N縊 tem como tirar o corpo de l・ Mas eu preciso fazer algo. R疳ido.
   Ainda me lembro do perfume de rosas que exalava do pesco輟 dela aquela noite. As crian軋s tinham ficado com a bab・ Tinhamos namorado a noite toda como dois adolescentes. Jantamos num �timo restaurante grego. L・ percebemos que a noite n縊 podia acabar. Nosso amor transbordava de n�s. Tudo em nossa volta ficava lindo. E o mundo parecia ser o melhor lugar pra viver. N瀰 parecia nada com esta dura verdade. N縊 podia ser comparado ao que estou vivendo.
   E meus filhos? Ainda os sinto dormindo em meus bra輟s e os ou輟 gritando por mim quando chego em casa. Ou輟 cada risada. Sinto aquele prazer ao v・los brincar. Dar de comer pra cada um. E mesmo quando fazem traquinagem, eu ficava feliz de ver quanta vida eles ainda tinham. S・n縊 sabia o quanto eu tinha.
   Eu n縊 posso perd・los. N縊 posso abandonar todos que eu amo assim. Eles precisam de mim. E eu tamb駑 preciso deles.
   O cemit駻io cheira a cravo e cera de vela. Eu vejo ao longe, todos al・ Meus irm縊s, meus pais, amigos do hospital, vizinhos, pessoas que me apoiaram em toda minha vida.
   L・no centro de todos, a vala est・ainda aberta. O caix縊 desce lentamente. Penso em fazer algo. Qualquer coisa que impe軋 eles de enterrarem meu corpo. Mas sei que ・tarde. Acabou.
   Em desespero ao me deparar com a verdade, eu derramo poucas l疊rimas. Em seguida seguro-as. Preciso ser forte. Por que a fraqueza n縊 ir・resolver nada.
   Meus filhos est縊 tristes. Quando eles nasceram eu disse a mim mesmo que nunca iria faz・los sofrer. N縊 queria ter de presenciar esta cena. A dor deles d�i em mim tamb駑. Eu os vejo chorar. Quero ir l・ dizer que est・tudo bem, que eu estou vivo. Dizer que ainda vou brincar com eles. Mas sei que eles n縊 iriam me reconhecer. Nunca iriam me aceitar.
   O ca輹la sempre foi t縊 parecido comigo. Ele ・o peda輟 de mim que fica. Esta l・ segurando a dor em seu cora鈬ozinho, sendo forte por todos. Ele olha triste para o caix縊. Mas n縊 derrama suas l疊rimas.
   Eu fraquejo por um instante. Esque輟 que n縊 sou mais eu mesmo e agarro o bra輟 de minha esposa quando ela saia. Vejo seus olhos tristes e retorno o olhar. Ela se vai, e eu volto `a realidade.
   Todos est縊 indo. S・fica um garoto solit疵io, ainda tentando ser mais forte do que pode. Eu n縊 aguento mais v・lo ali, t縊 triste. Me aproximo e arrisco lhe dizer uma coisa. Pergunto se est・bem. Sua voz treme, mas ainda resiste. Ele diz que est・bem, mas seu corpo parece mole, ele n縊 suporta mais tanta tristeza. Vejo uma l疊rima correr de seus olhinhos e molhar a bochecha. Logo sua m縊 apara a gota rebelde e tampa seus olhos, pra n縊 deixar ningu駑 ver que suas for軋s acabaram. Ele desaba e eu s・posso assistir ap疸ico.

   A noite j・caiu e eu ainda estou na janela do quarto, observando o nada, pensando em tudo. Eu me vejo obrigado a acreditar em algo insano. Almas existem. ﾉ tudo que eu sou agora. Uma alma dentro desse corpo emprestado. A garota e eu j・temos uma afinidade maior. Mas ela ainda n縊 conhece a extens縊 de seus problemas. Problemas que eu trouxe. Ela n縊 sabe de onde v麥 toda essa tristeza que a toma. N縊 entende por que chora a dor de algu駑 que ela n縊 conheceu.

   Sua m綟 bate na porta. Entra devagar. Todas as m綟s sentem quando um filho est・com problemas. ﾉ um sexto sentido. Esta n縊 ・diferente. Pergunta o que h・ O que a faz sofrer?
   A garota n縊 sabe as respostas. N縊 sabe que sou eu que estou lhe enchendo de tristeza, compartilhando meu sofrimento.
   Vendo que a garota estava confusa, a m綟 reformula sua pergunta. O que o faz sofrer, ela diz. N縊 a adolescente, mas o cirurgi縊.

   Como assim? Como ela descobriu? O que ela quis dizer com isso?
   Olhando-me com outros olhos, ela me pergunta de novo: o que te deixa t縊 triste agora que est・no C騏?
   C騏? Mas isso ・o C騏? Pelo que sei, as coisas deviam ser diferentes, com anjinhos tocando harpa, nuvens, togas... Mas isso ainda ・a Terra.
   Pe輟 que me explique que diabos de C騏 ・esse. E a m綟 explica calmamente. A morte n縊 ・o fim como voc・pensa. N�s recebemos um presente antes de inexistir, ela diz. Esse presente ・isso que voc・est・vivendo. ﾉ esse �ltimo m黌 antes de virar menos que fuma軋. Todos tem esse per�慧o para viver tudo o que n縊 pode viver enquanto tinha um corpo pr�prio. ﾉ como ser fantasma.
   Instintivamente eu repudio a id駟a. Mas o que mais explica isso? E ainda h・uma pergunta no ar: como essa mulher sabe tanto?
   Perguntada sobre isso, a m綟 da garota responde simplesmente que sabe tanto sobre minha situa鈬o por que tamb駑 est・vivendo isso.
   ﾉ claro. Isso era de se imaginar. H・algu駑 tomando o corpo da m綟 do corpo que eu estou tomando. Mas isso n縊 explica por que ele sabe tanto de mim e eu n縊 sei nada dele.
   Mas esse meu companheiro de "estado de espirito" s・me diz o que eu preciso mesmo saber. Ele diz que um m黌 passa r疳ido. ﾉ melhor viv・lo.
Ent縊 eu percebo que a m綟 volta a aparentar preocupa鈬o com a filha. A alma se foi. Seu m黌 deve ter acabado.
   Passo a noite em claro. Sinto a menina exausta, mas n縊 posso dormir. S・consigo pensar no que aquela alma me disse. Viver o que n縊 vivi em vida em um m黌. Mas ent縊 essa menina vai ter que obedecer todas as minhas vontades durante este �ltimo m黌? N縊 acho que eu queira viver meus �ltimos momentos apenas na pele de uma adolescente com problemas amorosos.
   ﾉ a・que eu sinto algo como quando voc・vai de encontro a uma parede e se joga contra ela. E quando eu abro os olhos, o mundo mudou de novo. Eu troquei de corpo.

   Eu lembro disso. Essa sensa鈬o t縊 boa. O calor de uma mulher. Seu corpo abra軋ndo o meu, o suor se misturando, a respira鈬o ofegante. E dessa vez no papel certo. N縊 estou mais naquela menina. Sou um homem de novo!
   A minha parceira ・linda. N縊 sei por que ent縊 que eu n縊 estou feliz com o que acabei de fazer. Ainda estou um pouco confuso. ﾉ estranho trocar de corpo, preciso reaprender tudo.

   A garota me olha. Quantos anos tem? Uns quinze, dezesseis? ﾉ t縊 nova pra mim. Ela parece apaixonada, mas eu sei que nunca quis mais que dormir com ela. Mas ela ainda me olha, com olhos brilhantes, cintilando como se fosse o melhor momento de sua vida. Seu bra輟 se enrola lentamente pelo corpo. O que eu fiz? S・transei com uma mina. Nada de mais. Por que eu t・sentindo essa... culpa?
   Ela quis, eu penso. Ela deixou, n縊 a obriguei e ent縊 n縊 fiz nada de errado. Quero que isso me deixe mais aliviado mas sei que tirei os sonhos de uma menina. Eu a usei e nem ao menos gosto dela. Ela fala sobre seus sonhos, o que vai ser quando crescer. Eu s・penso em crescer dentro dela.
Eu tenho um m黌. Ficar vendo dilemas de garotos virando homens me agrada tanto quanto os problemas de uma adolescente. Tento trocar de corpo de novo, dessa vez algo mais emocionante.

   Eu abro meus olhos e sinto o vento correr pelo meu corpo, querendo me rasgar. Minha boca est・seca, o ar rarefeito me impede de respirar adequadamente. Adrenalina toma minha mente e respirar se torna o �ltimo de meus pensamentos. Antes v麥 a sensa鈬o de liberdade, a velocidade do meu corpo em queda. Parece tudo mais lento. Parece que a vida ficou mais calma finalmente. Meus problemas ficam no caminho. E quando eu toco o ch縊, fecho os olhos e me preparo para a paz.

   Quando abro os olhos novamente, j・n縊 estou no suicida. Sinto a paz, mas n縊 ・a morte. ﾉ como um grande al�妬o, uma dor que eu sentia que se vai. Quem se importa com o que acontece depois? Eles dizem que vai zoar minha cabe軋. Mas nenhum deles passa fome. Nenhum deles precisa viver como eu.
Dou mais uma tragada. O cachimbo improvisado trepida. Minha vis縊 pisca em todas as cores. Sinto todo meu corpo pra depois n縊 sentir nada. Me sinto anestesiado. Pronto pra outra. E outra. E outra.
   Alguma coisa vai mal. Acho que chegou minha hora. A fuma軋 cheira a morte, todas as vozes que me chamam parecem cornetas. Eu vejo brilhos fortes e os anjos. Finalmente, Senhor. Estou livre da dor.

   Ainda sinto os efeitos. Demoro a acordar, o baque ainda ・grande. E minhas p疝pebras continuam a me fazer ver o escuro. Afinal, hoje ・um grande dia de sol. Pra que acordar t縊 cedo e estragar tudo? S・quero dormir.
   O despertador ainda toca mas eu o ignoro. N縊 me incomode, maquina maldita. Voc・n縊 sabe o que passei ontem. Me deixe em paz.
   Ontem eu perdi o grande amor da minha vida. Aquele por quem eu me apaixonei ainda menina, na frente do lago. Ele veio apressado me chamando.  Eu parei e esperei. Suas m縊s suadas carregavam uma rosa. Ele me entrega gentilmente e declama um poema. Meu peito chacoalha. ﾉ meu cora鈬o querendo sair. Nunca ouvi nada t縊 bonito na minha vida.
   Sua voz treme quando ele diz que me ama. Os p駸 parecem n縊 querer se postar firme. Tanto quanto suas m縊s, que n縊 sabem o que fazer. Seus olhos me fitam com timidez. E os meus retribuem. Ele sabe antes de eu terminar, que eu o amo tamb駑.
   Mas agora acabou. Eu abro os olhos e estou de volta a realidade. Agora n縊 recebo o bom dia bem-humorado dele. As crian軋s parecem desanimadas, ainda n縊 est縊 gritando pela casa. Tudo mudou. Queria poder voltar no tempo pra n縊 deixar acontecer. Talvez se eu n縊 tivesse feito aquilo, ele n縊 teria ido beber. E se n縊 tivesse bebido, n縊 teria me deixado. N縊 teria sofrido o acidente que o matou.

   Meu mundo parece ter perdido o sentido. Eu sei que ele n縊 gostaria de me ver assim, derrotada. Ser forte, nunca se render. Isso que ele me dizia. A fraqueza n縊 move o mundo, querida. N縊 seja derrotista, sua vida sempre ir・trazer novos desafios e muitas vit�rias. Mas eu nunca consegui ser forte como ele. Nunca pude aguentar a dor como ele.
   Sei que preciso ficar firme. Meus filhos precisam de mim mais do que nunca. Sem pai, elas v縊 precisar do dobro do meu amor. Meu Deus, o que eu fa輟 agora, sozinha?
   Eu des輟 a escada devagar. Tenho medo de trope軋r e cair. Tenho medo de perder o equilibrio. Perder meu rumo de novo.
   Quando estou chegando a sala, eu ou輟 meu filho mais velho. Ele est・com um amigo, conversando. Ele tem quatorze anos, sabe o que est・acontecendo. Os mais novos ainda n縊 conseguem entender que o pai realmente morreu. Meu irm縊 est・na cozinha, preparando o caf・ Prestativo, como sempre. Ele sempre cuidou de mim quando eu precisava.
   O caf・est・bem forte, ela vai precisar. A perda foi muito grande, ela o amava muito. Os dois eram t縊 pr�ximos, eu nunca havia visto um casal que ainda estava em lua de mel mesmo depois do terceiro filho. Sempre diziam "eu te amo" e "tome cuidado". Os dois eram t縊 pr�ximos, almas g麥eas de verdade. N縊 entendo como isso acontece com pessoas t縊 felizes, que jamais fizeram mal a ningu駑. Pelo contr疵io. Sempre foram caridosos.
   Ent縊 que eu a percebo, encostada no batente da porta. Elogia o cheiro do caf・ Tenta parecer normal, mas ainda tem muita tristeza no olhar dela. O que se diz para aliviar a dor de perder algu駑 t縊 pr�ximo como o marido era pra minha irm・ Me sinto t縊 in�til. Desde que 駻amos crian軋s, eu a defendia. Dos garotos que a chamavam de feiosa e magricela quando crian軋, dos mesmos garotos, que quando cresceram a viram com outros olhos, mas n縊 mereciam ela. E quando virou mulher, ela encontrou algu駑 que a defendia como eu. E fui seu padrinho quando se casaram.
   Ainda n縊 entendo como algu駑 como ele iria se embebedar e depois dirigir em alta velocidade. ﾉ como se ele quisesse morrer. N縊 era do feitio dele. N�s tom疱amos umas cervejinhas de vez em quando mas n縊 o via como um alc�latra. Pelo contr疵io, ele era bem controlado e controlava tamb駑 todos que bebiam com ele. Uma bebidinha n縊 faz mal, mas embriaguez pode acabar com o seu casamento, dizia ele quando via algu駑 enxugando as garrafas.
Eu queria te abra軋r, querida. Te olho agora, por olhos que n縊 s縊 meus. Sinto teu perfume delicado. E me d�i saber que pode ser a �ltima vez. N縊 imaginei que podia parar aqui, pra te rever.

   Quando me avisaram sobre meu estado atual, eu pensei em fazer loucuras que eu n縊 havia feito em vida. Coisas que n縊 experimentei por que achava errado. Ou por medo. Mas foi s・sentir teu corpo de novo para que eu percebesse o que devia fazer no fim do meu tempo no mundo. Vou cuidar de voc・e de nossos filhos.
    E quem sabe, ter teu amor mais uma �ltima vez.

   Preciso me aproximar dela de novo. me sinto como o garoto que anos atr疽, se declarou pra ela. Era t�格do, amava muito ela mas tinha medo de n縊 ser correspondido. Talvez por pensar que uma garota t縊 linda como ela n縊 iria querer nada com um cara t縊 simples como eu. Mas deu tudo certo. Eu tomei coragem num dia, fui atr疽 dela, comprei uma rosa e depois tudo foi natural. N�s est疱amos destinados.
   Como eu poderia ficar perto dela de novo sem ter que usar um corpo do qual ela possa se atrair? Eu poderia usar uma garota. Mas eu n縊 gosto daquela sensa鈬o constante que eu sentia. N縊 sei, acho que era menstrua鈬o. Nunca senti aquilo.
   Ent縊 eu preciso pensar em um corpo que eu possa usar sem sentir ci�me. Talvez eu possa usar o irm縊 dela. Eles eram t縊 pr�ximos quanto n�s, acho que d・ Mas ele ainda ・homem, n縊 sei se me sentiria seguro. Quer dizer, se de repente eu agarro ela? Por que eu ainda a desejo muito e se o irm縊 dela sentir um pouco desse desejo, acho que o resultado pode ser catastr�fico!
   Entro na sala, sento no sof・e vejo a pessoa certa. Um dos amigos do meu filho. ﾉ perfeito. Homem, com acesso a casa, j・conhece minha esposa e ・jovem. Demais pra poder acontecer algo al駑 do que eu preciso.
   Por hoje, vou planejar o que fazer. Amanh・de manh・ eu vou come軋r a usar o corpo do garoto. E o qu・fazer, exatamente? A primeira coisa ・deixa-la ・vontade com o garoto. Eu devia esperar pelo menos o luto, mas n縊 sei se teria tempo depois. S・tenho um m黌. Acho melhor come軋r logo mesmo.
   Eu posso come軋r conversando com ela. Puxar qualquer assunto. Ela sempre gostou de bater papo. Quem sabe eu consiga abordar o assunto ainda no mesmo dia. Da・ eu preciso dizer a ela que estou bem, que n縊 precisa se preocupar. E que ela precisa cuidar dos nossos filhos. Mas se eu disser isso, ela vai me achar um louco e ainda sem respeito pela morte do marido dela. Preciso me controlar. As palavras devem ser acalentadoras mas n縊 pode transparecer que sou eu que estou dizendo.
   Ser・que eu aguentaria conversar com ela sem abra釿-la e beij・la? Eu sinto vontade agora mesmo.
   Vou dormir agora. E amanh・ vai come軋r.

   O dia est・particularmente lindo. O c騏 est・azul, sem nuvens. Uma brisa suave entra no quarto. E eu estou num corpo perfeito pra me aproximar de minha esposa. O que pode dar errado?
   Eu vou visitar meu filho. Tinhamos marcado de assitir a um filme que ia passar na TV. Ele t・precisando ficar mais calmo. Lembro que eu ia assistir esse filme com ele. S・que eu n縊 posso fazer isso, n縊 fisicamente. Eu morri. S・posso assistir usando o corpo de outra pessoa.
   A tarde passa e eu s・consigo pensar nela. Meu filho est・bem, j・est・mais calmo e parece que vai aguentar. Mas ela... Ela parecia p駸sima. Eu n縊 aguento saber que ela est・t縊 triste.
   O filme acabou. Eu ou輟 o trinco da chave girar ruidoso. Ele ainda emperra. Devia ter arrumado. Mas eu sempre dizia pra esquecer, isso n縊 era importante, afinal, a chave ainda entra. Eu devia ter consertado!
   ﾉ ela. Nos diz boa tarde rapidamente e vai pra cozinha dizendo que o jantar fica pronto daqui a pouco. Ela sempre fazia isso. Chega em casa, nos avisa que vai fazer o jantar e nos serve aqueles banquetes que ela fazia quest縊 de servir todos os dias. Eu nunca pude reclamar de sua comida. Ela sempre cozinhou como um verdadeiro chef.
   N縊 consigo pensar em outra coisa sen縊 em v・la e sentir seu perfume no pesco輟. O cheiro delicado de rosas. Ah, como eu sou apaixonado por ela.
   Preciso ficar um pouco mais perto dela. Invento que vou beber 疊ua. Me levanto e vou em dire鈬o ・cozinha. Sinto algo estranho, um certo pavor. Me aproximo da porta e vejo aquela silhueta feminina, posta a frente da pia, cortando algo na t畸ua. Me perco naquelas curvas. Vejo o quadril dela balan軋r suave a cada corte. Seus cabelos correndo as costas como uma cachoeira castanha, suave. Ela levanta um pouco um dos p駸, dando mais suavidade ainda 瀲uele momento. Eu quase esque輟 de minhas limita鋏es.
   Me aproximo calculista. Quando ela me percebe, tenta ser prestativa como sempre e pergunta se eu quero alguma coisa. Intintivamente eu pego um copo e come輟 a me servir de 疊ua. Fico nervoso e n縊 sei o que dizer. Fecho a torneira at・parar, abro mais um pouco e fecho apertado desta vez. Como eu fazia quando vivo. Eu percebo meu deslize. Olho em sua dire鈬o e sei que ela tamb駑 percebeu este detalhe. Talvez pense ser s・paran�ia.
   A 疊ua parece whisky. Desce grossa, queimando. Meu est�mago revira e parece querer se abrir. Eu a vejo me olhar beber. E isso me deixa mais impaciente. Escorre um pouco de 疊ua pelo canto de minha boca. Eu limpo podo a m縊 na boca e balan軋ndo a cabe軋. Eu sempre fiz isso. Mas neste momento foi um deslize! Ela percebeu e me olha com os olhos quase lacrimejantes.
   Eu pergunto o que aconteceu, tento acalm・la. Ela deve estar se sentindo rid��ula vendo estes pequenos detalhes e lembrando de mim. Mas prefere me dizer que n縊 ・nada. Que s・lembrou do marido falecido.
Deve estar sendo dif��il pra ela. N縊 sei exatamente como poderia diminuir esta dor. Eu s・passo a m縊 em suas costas, suave. E depois me lembro que era isso que eu fazia pra acalm・la antes. Tiro a m縊 dela assim que percebo. Ela se vira com um olhar de espanto. Eu n縊 devia ter feito isso. Saio depressa da cozinha e a deixo l・ sozinha com sua confus縊.
   Sou convidado a jantar. Sentir o sabor daquela comida mais uma vez ・como se eu estivesse vivo de novo. E est縊 todos a mesa. Meus filhos, minha esposa e eu, sentado em minha antiga cadeira. Percebo que estou sendo observado. Isso me deixa nervoso. N縊 consigo disfar軋r meus jeitos. Por que ela n縊 p疵a de me olhar? Assim eu n縊 consigo fingir que n縊 sou eu.
   Termino o jantar e minha esposa tira a mesa. Meu filho me chama e eu penso em ir embora. J・fiz besteiras demais por hoje. Mas quando vou me despedir, ela me diz que precisa falar comigo.
   Vamos ・sala vazia. Sentados no sof・ ficamos at�nitos nos olhando. Pergunto o que h・ E ela me diz que percebe algo diferente em mim. Diz que nunca havia percebido isso.
   Nos conhecemos a tanto tempo, voc・・amigo de meu filho a tanto tempo, diz ela com um olhar temeroso. Voc・parece ter algo de meu marido. Algo que eu n縊 prestava mais tanta aten鈬o. Ela diz que est・confusa com isso. Eu consigo ouvir seu cora鈬o, batendo no mesmo ritmo de quando nos am疱amos. Penso em beijar aqueles l畸ios macios e saborosos. Aproximo meu rosto e ela fecha os olhos. N縊 posso me conter.
   E a beijo.

   Ainda fico pensando na besteira que fiz! Beijar minha esposa daquele jeito. Ela deve me achar louco. Mas eu n縊 estou acostumado ao fato de que estou em outro corpo e perto dela eu sinto anseios, preciso fazer. Eu a amo muito e n縊 posso evitar.
   Aquela besteira que fiz me tirou uma grande chance. Eu a conhe輟, sei que ela deve estar se trancando agora, n縊 vai deixar ningu駑 se aproximar novamente. E este corpo principalmente. Devia sair dele ent縊 e tentar alguma outra pessoa. Se eu me controlar, posso tentar algum de nossos filhos. Ou os pais dela.
   A quem eu quero enganar. N縊 posso me controlar ao v・la, t縊 delicada, seu olhar me distraindo da realidade. Eu a amo mais que qualquer corpo possa conter.
   Como ela estar・ Eu gostaria de saber como ela encarou isso. Mas n縊 posso voltar no corpo dela. N縊 ・certo. Invadir sua privacidade. Quando nos casamos prometemos nunca fazer isso. Mas...
   O que aconteceu comigo? Ser・que eu enlouqueci. A morte do meu marido n縊 devia me afetar assim. Um garoto. Eu beijei um garoto. Como pude fazer isso? Deus...
   Ser・que ・mesmo somente algum efeito decorrente da minha perda? Ser・que ・isso? Eu quis ser amada pra suprir a falta que eu sinto?
Oh, meu amor, por que voc・tinha que me fazer uma coisa dessas? Eu estou t縊 desnorteada sem a sua for軋 por perto. Por que a gente n縊 viveu at・nossos �ltimos dias juntos? N�s viviamos dizendo que iriamos morrer velhinhos, juntos em nosso leito de amor. Eu preciso de voc・ao meu lado.
   E pensar que tudo aconteceu por que eu fiz aquela besteira. Nossa vida era t縊 perfeita. N縊 sei por que fiz uma coisa dessas. Eu sou a culpada, a �nica culpada por sua morte, meu amor! Fui eu que te levei a morrer aquela noite! Voc・nunca devia ter passado por aquilo!
   Tudo ia t縊 bem que eu desejei que algo desse errado. Precisava violar a perfei鈬o que era minha vida. Nunca mereci a vida que voc・me deu. Eu n縊 podia.
   Um marido lindo que me deu tr黌 belos filhos. Cirurgi縊 famoso, mas nunca ocupado demais pra fam�永a. E sempre mimando as pessoas que amava. E ainda era muito generoso, participou de dezenas de campanhas para ajudar os mais desfavorecidos. Ajudava os amigos em tudo e nunca pediu nada em troca. Sempre que se deitava ao meu lado me dizia - eu te amo, querida. Por tudo que voc・・
   Eu nunca mereci ser amada desse jeito!
   Voc・morreu por minha culpa! Eu te assassinei sem usar armas. E te destrui pelo seu ponto fraco. O cora鈬o.
   Eu n縊 consigo acreditar que ela fez isso. Eu n縊 consigo acreditar. Ela ・perfeita. Essas coisas n縊 acontecem com pessoas que se amam como n�s nos amamos! N縊 pode ser. Como eu n縊 lembrei?
   Naquele dia, eu tinha trabalhado muito. Cheguei em casa e percebi que minha esposa n縊 estava. As crian軋s j・dormiam. Fui ao nosso quarto e vi sua agenda aberta. N縊 pude deixar de notar aquela anota鈬o. S・bati o olho enquanto as p疊inas se fechavam mas pude sentir.
   Quando eu a encontrei, sabia o que ia ver s・de ouvir as vozes. A porta estava entreaberta e eu a vi. O meu mundo come輟u a ruir. Ela me traiu.
   Ou輟 sua voz suave implorando por viol麩cia, suas m縊s delicadas tocando outros homens, o corpo suado se movimentando freneticamente como fazia em mim. E a v疵ias noites ela j・me parecia cansada. Vinha fazendo esse horror a tanto tempo que talvez nem ela saiba mais quando come輟u.
   A porta se escancara e tr黌 rapazes procuram se esconder. O olhar dela me distrai da realidade uma �ltima vez. Depois, essa mesma realidade destroi minha vida. Nada parece fazer sentido. Ela chora l疊rimas vazias e me pede perd縊. N縊 sabe o que est・fazendo. Ela diz que nunca devia ter feito isso e eu perco o controle. Pela primeira vez minha m縊 a toca com for軋, num tapa que a joga contra o ch縊. Pergunto se n縊 sabia o que estava fazendo quando cavalgava aqueles dois. Pergunto se n縊 sabia o que fazia quando sugava mais um, completando aquela orgia.
   Digo que jamais ver・meus filhos novamente, que n縊 adianta chorar. S�plicas n縊 mudam minha opini縊. Desde o dia em que dei aquela rosa quando 駻amos crian軋s, eu s・pedi uma coisa pra ela. S・pedi que sempre fosse sincera comigo. Que se o amor acabasse, eu fosse o primeiro a saber.
   Sem ela, eu perco meu eixo. N縊 sei o que fazer. Ent縊 talvez seja melhor n縊 fazer nada. Talvez seja melhor largar a garrafa. E seja melhor largar o volante tamb駑. Eu nunca pedi demais de minha vida. E se eu n縊 posso ter nem isso, ent縊 n縊 preciso de vida.
   Enquanto o carro se aproxima da parede, eu penso: se Deus realmente existe, ele vai ter que me dar uma grande explica鈬o.

continua...