Voltar...

  Um mês
parte um de dois

por Fabio Satoshi Sakuda, F/X
xsakuda@hotmail.com

   Após anos de vida, sempre nos deparamos com o fim. Ele pode vir logo após nosso nascimento. Ou pode vir após mais de um século de existência. E se hEuma certeza na vida, essa Eela. Quem estEvivo, pode morrer...
Sempre fui cético, não podia crer no que não havia visto ou vivido. O que me esperava após a morte? Por mim, nada. E eu estava mais que satisfeito com isso. Pra que existir sem vida, pensava eu.
   Pois este dia chegou. O nada vinha me abraçar, denso como uma rocha, esmagando meus pulmões e me impedindo de respirar. Lentamente eu via o mundo ficar avermelhado e depois enegrecido. Sei que meus músculos estão latejando e minha carne foi rompida. Simplesmente não sinto isso.
   E então, após perder todos os sentidos, percebo que morri. O nada Eacalmante, sei que isso deve ser apenas um estado temporário, antes de ir mesmo. Ir pra total inexistência.
   Fecho os olhos. Na verdade simplesmente imagino não enchergar o que antes jEnão enchergava. E de repente as pálpebras tremem. Um brilho intenso me força a fazer algo que achei ser impossivel agora. Eu acordo.
   O rádio-relogio toca incessante. O som não incomoda, o que incomoda Ea luz forte do sol que entra pela janela. Quanto tempo passei naquela escuridão? Sei apenas que foi suficiente pros meus olhos esquecerem a luz.
   Se eu não morri, então o que foi aquilo que senti? O que aconteceu comigo? Um sonho poderia ser tão intenso como aquele momento? Não, eu realmente beirei a morte. Realmente passei por aquele momento que parecia ser o último. Então como sobrevivi?
   Vou levantar e ir pro banheiro. Um bom banho vai me aliviar dessa dúvida. Mal percebo que estou caminhando. SerEque Eefeito colateral? O espelho continua embaçado. Minha esposa deve ter
saúo do banho ainda agora.
   A água corre quente pelo meu corpo. Eu nunca senti um banho dessa forma. As gotas quentes rolando, deslizando por mim. Eu ensaboo meu peito e sinto ele maior e mais macio que o normal. Hm... Devo ter engordado e sEpercebi hoje o quanto aquelas comidas gordurosas me fazem mal.
   A toalha Emacia. E a sensação Eincrú“el. Por que nunca percebi como era agradável se enxugar? Acho que depois de quase morrer tudo fica mais agradável. Aquilo de sentir mais vontade de viver.
   O espelho ainda estEembaçado. Eu passo a mão no vidro. E a medida que o reflexo da meu rosto fica evidente, eu percebo que hEalgo muito errado.
   Oh, não! Meu peito estava mais macio, meu cabelo bate no meu ombro e eu não tenho mais aquela barriga saliente de anos de cerveja. O que diabos aconteceu quando eu morri?!?

@

   Como não reparei antes! Eu me tornei uma garota!! Como? Eu.. eu sei que quase morri mas não sei o que aconteceu depois. Tudo aquilo que sonhei, que parecia tão real. O que aconteceu comigo? É estranho ver meu corpo... ver este corpo!
   Meu peito estEmaior e mais macio, meu rosto tem um traço mais afeminado, minhas mãos são delicadas. O pior Enão sentir nada balançar abaixo da minha cintura!! Eu o perdi!
   Me sinto um eunuco. Na verdade, eu sou eunuco, não tenho meu... quem fez essa coisa em mim?
   Ainda nu... nua, eu me sento na cama. Fico encarando a mim mesmo e tentando imaginar o que me faria isso. Nunca achei que diria uma coisa dessas mas, eu estou me sentindo atraido pelo meu próprio corpo. Isso me dEao mesmo tempo uma sensação de... excitação e de pavor. Eu sou um homem! Não uma garota, isso estEerrado!
   De repente, como se em resposta ao meu pensamento, lembro de algo de meu passado. Eu estou nu... nua como agora. Deitada num colchão macio. E ele estEcomigo. Seu braço forte me enlaça como se nunca fosse me soltar. Sua perna se movimenta de encontro a minha. O calor de seu corpo me envolvendo e aquecendo o quarto nessa noite tão fria. Ele sussurra em meu ouvido, diz que me ama. Eu sinto sua boca massagear meu pescoço. Sinto suas mãos acariciar meus seios. Mas como se eu nunca tive seios antes desse dia!!
   Então como eu ainda consigo sentir tudo em meu corpo? Como posso ainda ser tocada por aquelas mãos carinhosas. Sentir seus olhos a me fitar. E algo cresce em encontro a meu ventre. Rú„ido e muito quente. Me toca como meu amor. Eu sinto como se estivesse... pirando! SEpode ser! Afinal, isso que eu tEvestindo Euma menina ou uma pequena prostituta? Não sei, mas por ele eu seria tudo. Seria a vadia e a santa, couro e plumas, palmadas e carinhos. Faria tudo pra deixElo feliz. Amaria cada momento de nossa vida.
   Mas eu acordo desse sonho louco. Sei que não foi tudo tão lindo assim. Sei que não devia ter feito isso. Por que depois, ele me deixou. Se não tivesse me entregado aquela noite, eu ainda o teria pra me aquecer em noites frias. Ainda estaria com meu amor. Mas meu amor Eminha esposa. Meus filhos. Eu nunca amei um homem... como amo este.
   Então Eisso. Eu não morri. Isso não aconteceu. Foi sEum sonho. E eu sou mesmo apenas uma garota. Mesmo tendo essas lembranças tão fortes em minha mente, eu sou sEuma garota. Deus, então por que estou tão triste de saber que essas lembranças são falsas?
   Deus..?
   PeraE eu não era cético?

@

   Acho que esse sonho me deixou mesmo muito confusa. Não consigo mais dicenir o real da fantasia! Mas Emesmo muito difú€il esquecer que não tenho mais uma esposa, três filhos e uma vida toda jEvivida. Me dói o peito sEde pensar que não posso mais amar meus filhos simplesmente por que eles jamais existiram. E minha mulher também.
   Me visto e pego minhas coisas. Detesto me atrasar pro colégio. Quando estou descendo a escada, sinto cheiro de ovos com bacon. Meu pai ainda estEem casa. Vou poder chegar mais rápido pegando uma carona com ele.
   Chego no colégio. Meu pai se despede de mim e eu espero ele sumir de vista. De repente, sinto vontade de fumar. Logo eu, que sempre fui anti-tabagista. Ponho minha mão na bolsa e encontro um maço de cigarro. O isqueiro estEdentro. Que estranho, eu nunca fumei antes! Quer dizer, minha outra vida nunca fumou. Eu fumo desde os quatorze, quando um namorado me fez dar uma tragada no cigarro dele. Estranho eu ter me esquecido assim. Acho que ainda estou meio atormentada por aquele sonho.
   Enquanto acendo o cigarro, vejo minhas amigas se aproximarem. Sei que terei que ouvir elas me dizendo que meu namorado era um babaca, que não presta e que todos os homens são iguais. É o protocolo da separação. Sempre dizemos isso a uma amiga na mesma situação que a minha. SEque nem sempre a garota ama o rapaz como eu o amava.
   Entre piadas e comentários de como minha saia combinava com minha blusinha perfeitamente, eu dou uma leve espiada no decote de uma das minhas amigas. Ela tem os seios fartos, com um balanço enlouquecedor. Percebo que estou querendo tocElos quando dou uma olhada mais calma. Ela parece não ligar pros meus olhares. Pois eu sEpenso em ir para um canto com ela e devorEla. Imagino seus gemidos em meus ouvidos.Leves gritinhos enquanto eu exploro cada detalhe secreto de seu corpo. Antes que possa perder a cabeça, ouço o sinal. A primeira aula vai começar.

   No caminho de volta, eu penso em ligar pro meu namorado. Penso em dizer que o amo muito e perguntar como foi seu dia. Penso, na verdade, que ainda o namoro, por que ele jEme deixou. Mas meu coração não entende.
   Preciso esquecElo. Acho melhor tentar entender o que sentia por minha amiga. Eu nunca havia tido estes desejos homossexuais antes. TEcerto que eu a achava bonita, mas nunca senti desejos por ela. Mas hoje eu me sento do seu lado, para poder olha-la durante as aulas. Enquanto o professor de matemática tenta dar sua aula, eu a imagino nua, dançando como uma pequena piranha sobre a carteira do professor. Em geografia, sEaprendi que a desejava rebolando em meu colo. E vEla de shortinho na aula de Educação Fisica, me deixou tão excitada que quase a ataquei. Eu estava atraida por outra garota!
   Quando entro em casa, minha mãe me avisa que o almoço sai em dez minutinhos. Subo para me trocar.
   Estou tirando minha blusa quando olho de relance pro espelho e tomo um susto. É o meu rosto. Meu rosto de homem!
   Olho novamente e sEvejo minha face delicada, com batom nos lábios. Foi sEum lapso. Mas eu acho que tudo isso não EsEum sonho. Acho que Emuito mais. Deve ser alguma vida passada. Isso explicaria tudo, não E Dizem que as pessoas têm visões de suas vidas passadas nos sonhos. De repente, Eisso.
A salada estEmuito gostosa. Minha mãe finalmente acertou o tempero. Enquanto comemos, ouço a tv ligada na sala. O noticiário sempre fala de acidentes, EatEcomum. Mas eu me sinto impelida a ir pra frente da tela ver com mais atenção.

   O motorista dirigia embriagado. Seu carro estava muito mais veloz que o permitido e a curva veio mais rápido que qualquer pensamento do infeliz. O carro saiu da pista e bateu de frente a um muro. A batida foi tão violenta que o tal muro desabou sobre o carro. O repórter diz que a morte foi instantânea.
   Logo depois aparece a imagem da viúva. Tão bela, com os olhos molhados, cheios de tristeza. A indignação em ter que viver sE Seus três filhos também choram, abraçados a mãe. Por um instante, eu me perco naquela cena. Meu coração se aperta e pára enquanto eu ouço aquela voz. É a mesma que tantas noites declarou seu amor a mim. É a mesma que disse sim quando a pedi em casamento, ajoelhado em frente ao lago onde nos conhecemos.
Eu morri mesmo. Agora tenho certeza disso.

   Corro o mais rápido que posso. Este corpo Ebem mais rápido que o antigo. Antes eu tinha problemas na hora de correr. Vida sedentária, vocEsabe. Mas mesmo correndo muito, esta garota não Etão rápida quanto eu preciso.
   Meu corpo verdadeiro vai estar a sete palmos da terra se eu não impedir. Mas como? O que fazer? SerEque minha mulher aceitaria que eu dissesse que me tornei uma garota? Não, no mú‹imo eu seria ridicularizado por todos e detestado pela minha própria famú‰ia. Não tem como tirar o corpo de lE Mas eu preciso fazer algo. Rápido.
   Ainda me lembro do perfume de rosas que exalava do pescoço dela aquela noite. As crianças tinham ficado com a babE Tinhamos namorado a noite toda como dois adolescentes. Jantamos num ótimo restaurante grego. LE percebemos que a noite não podia acabar. Nosso amor transbordava de nós. Tudo em nossa volta ficava lindo. E o mundo parecia ser o melhor lugar pra viver. Nào parecia nada com esta dura verdade. Não podia ser comparado ao que estou vivendo.
   E meus filhos? Ainda os sinto dormindo em meus braços e os ouço gritando por mim quando chego em casa. Ouço cada risada. Sinto aquele prazer ao vElos brincar. Dar de comer pra cada um. E mesmo quando fazem traquinagem, eu ficava feliz de ver quanta vida eles ainda tinham. SEnão sabia o quanto eu tinha.
   Eu não posso perdElos. Não posso abandonar todos que eu amo assim. Eles precisam de mim. E eu também preciso deles.
   O cemitério cheira a cravo e cera de vela. Eu vejo ao longe, todos alE Meus irmãos, meus pais, amigos do hospital, vizinhos, pessoas que me apoiaram em toda minha vida.
   LEno centro de todos, a vala estEainda aberta. O caixão desce lentamente. Penso em fazer algo. Qualquer coisa que impeça eles de enterrarem meu corpo. Mas sei que Etarde. Acabou.
   Em desespero ao me deparar com a verdade, eu derramo poucas lágrimas. Em seguida seguro-as. Preciso ser forte. Por que a fraqueza não irEresolver nada.
   Meus filhos estão tristes. Quando eles nasceram eu disse a mim mesmo que nunca iria fazElos sofrer. Não queria ter de presenciar esta cena. A dor deles dói em mim também. Eu os vejo chorar. Quero ir lE dizer que estEtudo bem, que eu estou vivo. Dizer que ainda vou brincar com eles. Mas sei que eles não iriam me reconhecer. Nunca iriam me aceitar.
   O caçula sempre foi tão parecido comigo. Ele Eo pedaço de mim que fica. Esta lE segurando a dor em seu coraçãozinho, sendo forte por todos. Ele olha triste para o caixão. Mas não derrama suas lágrimas.
   Eu fraquejo por um instante. Esqueço que não sou mais eu mesmo e agarro o braço de minha esposa quando ela saia. Vejo seus olhos tristes e retorno o olhar. Ela se vai, e eu volto `a realidade.
   Todos estão indo. SEfica um garoto solitário, ainda tentando ser mais forte do que pode. Eu não aguento mais vElo ali, tão triste. Me aproximo e arrisco lhe dizer uma coisa. Pergunto se estEbem. Sua voz treme, mas ainda resiste. Ele diz que estEbem, mas seu corpo parece mole, ele não suporta mais tanta tristeza. Vejo uma lágrima correr de seus olhinhos e molhar a bochecha. Logo sua mão apara a gota rebelde e tampa seus olhos, pra não deixar ninguém ver que suas forças acabaram. Ele desaba e eu sEposso assistir apático.

   A noite jEcaiu e eu ainda estou na janela do quarto, observando o nada, pensando em tudo. Eu me vejo obrigado a acreditar em algo insano. Almas existem. É tudo que eu sou agora. Uma alma dentro desse corpo emprestado. A garota e eu jEtemos uma afinidade maior. Mas ela ainda não conhece a extensão de seus problemas. Problemas que eu trouxe. Ela não sabe de onde vêm toda essa tristeza que a toma. Não entende por que chora a dor de alguém que ela não conheceu.

   Sua mãe bate na porta. Entra devagar. Todas as mães sentem quando um filho estEcom problemas. É um sexto sentido. Esta não Ediferente. Pergunta o que hE O que a faz sofrer?
   A garota não sabe as respostas. Não sabe que sou eu que estou lhe enchendo de tristeza, compartilhando meu sofrimento.
   Vendo que a garota estava confusa, a mãe reformula sua pergunta. O que o faz sofrer, ela diz. Não a adolescente, mas o cirurgião.

@

   Como assim? Como ela descobriu? O que ela quis dizer com isso?
   Olhando-me com outros olhos, ela me pergunta de novo: o que te deixa tão triste agora que estEno Céu?
   Céu? Mas isso Eo Céu? Pelo que sei, as coisas deviam ser diferentes, com anjinhos tocando harpa, nuvens, togas... Mas isso ainda Ea Terra.
   Peço que me explique que diabos de Céu Eesse. E a mãe explica calmamente. A morte não Eo fim como vocEpensa. Nós recebemos um presente antes de inexistir, ela diz. Esse presente Eisso que vocEestEvivendo. É esse último mês antes de virar menos que fumaça. Todos tem esse perúŒdo para viver tudo o que não pode viver enquanto tinha um corpo próprio. É como ser fantasma.
   Instintivamente eu repudio a idéia. Mas o que mais explica isso? E ainda hEuma pergunta no ar: como essa mulher sabe tanto?
   Perguntada sobre isso, a mãe da garota responde simplesmente que sabe tanto sobre minha situação por que também estEvivendo isso.
   É claro. Isso era de se imaginar. HEalguém tomando o corpo da mãe do corpo que eu estou tomando. Mas isso não explica por que ele sabe tanto de mim e eu não sei nada dele.
   Mas esse meu companheiro de "estado de espirito" sEme diz o que eu preciso mesmo saber. Ele diz que um mês passa rápido. É melhor vivElo.
Então eu percebo que a mãe volta a aparentar preocupação com a filha. A alma se foi. Seu mês deve ter acabado.
   Passo a noite em claro. Sinto a menina exausta, mas não posso dormir. SEconsigo pensar no que aquela alma me disse. Viver o que não vivi em vida em um mês. Mas então essa menina vai ter que obedecer todas as minhas vontades durante este último mês? Não acho que eu queira viver meus últimos momentos apenas na pele de uma adolescente com problemas amorosos.
   É aEque eu sinto algo como quando vocEvai de encontro a uma parede e se joga contra ela. E quando eu abro os olhos, o mundo mudou de novo. Eu troquei de corpo.

@

   Eu lembro disso. Essa sensação tão boa. O calor de uma mulher. Seu corpo abraçando o meu, o suor se misturando, a respiração ofegante. E dessa vez no papel certo. Não estou mais naquela menina. Sou um homem de novo!
   A minha parceira Elinda. Não sei por que então que eu não estou feliz com o que acabei de fazer. Ainda estou um pouco confuso. É estranho trocar de corpo, preciso reaprender tudo.

   A garota me olha. Quantos anos tem? Uns quinze, dezesseis? É tão nova pra mim. Ela parece apaixonada, mas eu sei que nunca quis mais que dormir com ela. Mas ela ainda me olha, com olhos brilhantes, cintilando como se fosse o melhor momento de sua vida. Seu braço se enrola lentamente pelo corpo. O que eu fiz? SEtransei com uma mina. Nada de mais. Por que eu tEsentindo essa... culpa?
   Ela quis, eu penso. Ela deixou, não a obriguei e então não fiz nada de errado. Quero que isso me deixe mais aliviado mas sei que tirei os sonhos de uma menina. Eu a usei e nem ao menos gosto dela. Ela fala sobre seus sonhos, o que vai ser quando crescer. Eu sEpenso em crescer dentro dela.
Eu tenho um mês. Ficar vendo dilemas de garotos virando homens me agrada tanto quanto os problemas de uma adolescente. Tento trocar de corpo de novo, dessa vez algo mais emocionante.

   Eu abro meus olhos e sinto o vento correr pelo meu corpo, querendo me rasgar. Minha boca estEseca, o ar rarefeito me impede de respirar adequadamente. Adrenalina toma minha mente e respirar se torna o último de meus pensamentos. Antes vêm a sensação de liberdade, a velocidade do meu corpo em queda. Parece tudo mais lento. Parece que a vida ficou mais calma finalmente. Meus problemas ficam no caminho. E quando eu toco o chão, fecho os olhos e me preparo para a paz.

   Quando abro os olhos novamente, jEnão estou no suicida. Sinto a paz, mas não Ea morte. É como um grande alú“io, uma dor que eu sentia que se vai. Quem se importa com o que acontece depois? Eles dizem que vai zoar minha cabeça. Mas nenhum deles passa fome. Nenhum deles precisa viver como eu.
Dou mais uma tragada. O cachimbo improvisado trepida. Minha visão pisca em todas as cores. Sinto todo meu corpo pra depois não sentir nada. Me sinto anestesiado. Pronto pra outra. E outra. E outra.
   Alguma coisa vai mal. Acho que chegou minha hora. A fumaça cheira a morte, todas as vozes que me chamam parecem cornetas. Eu vejo brilhos fortes e os anjos. Finalmente, Senhor. Estou livre da dor.

   Ainda sinto os efeitos. Demoro a acordar, o baque ainda Egrande. E minhas pálpebras continuam a me fazer ver o escuro. Afinal, hoje Eum grande dia de sol. Pra que acordar tão cedo e estragar tudo? SEquero dormir.
   O despertador ainda toca mas eu o ignoro. Não me incomode, maquina maldita. VocEnão sabe o que passei ontem. Me deixe em paz.
   Ontem eu perdi o grande amor da minha vida. Aquele por quem eu me apaixonei ainda menina, na frente do lago. Ele veio apressado me chamando.  Eu parei e esperei. Suas mãos suadas carregavam uma rosa. Ele me entrega gentilmente e declama um poema. Meu peito chacoalha. É meu coração querendo sair. Nunca ouvi nada tão bonito na minha vida.
   Sua voz treme quando ele diz que me ama. Os pés parecem não querer se postar firme. Tanto quanto suas mãos, que não sabem o que fazer. Seus olhos me fitam com timidez. E os meus retribuem. Ele sabe antes de eu terminar, que eu o amo também.
   Mas agora acabou. Eu abro os olhos e estou de volta a realidade. Agora não recebo o bom dia bem-humorado dele. As crianças parecem desanimadas, ainda não estão gritando pela casa. Tudo mudou. Queria poder voltar no tempo pra não deixar acontecer. Talvez se eu não tivesse feito aquilo, ele não teria ido beber. E se não tivesse bebido, não teria me deixado. Não teria sofrido o acidente que o matou.

@

   Meu mundo parece ter perdido o sentido. Eu sei que ele não gostaria de me ver assim, derrotada. Ser forte, nunca se render. Isso que ele me dizia. A fraqueza não move o mundo, querida. Não seja derrotista, sua vida sempre irEtrazer novos desafios e muitas vitórias. Mas eu nunca consegui ser forte como ele. Nunca pude aguentar a dor como ele.
   Sei que preciso ficar firme. Meus filhos precisam de mim mais do que nunca. Sem pai, elas vão precisar do dobro do meu amor. Meu Deus, o que eu faço agora, sozinha?
   Eu desço a escada devagar. Tenho medo de tropeçar e cair. Tenho medo de perder o equilibrio. Perder meu rumo de novo.
   Quando estou chegando a sala, eu ouço meu filho mais velho. Ele estEcom um amigo, conversando. Ele tem quatorze anos, sabe o que estEacontecendo. Os mais novos ainda não conseguem entender que o pai realmente morreu. Meu irmão estEna cozinha, preparando o cafE Prestativo, como sempre. Ele sempre cuidou de mim quando eu precisava.
   O cafEestEbem forte, ela vai precisar. A perda foi muito grande, ela o amava muito. Os dois eram tão próximos, eu nunca havia visto um casal que ainda estava em lua de mel mesmo depois do terceiro filho. Sempre diziam "eu te amo" e "tome cuidado". Os dois eram tão próximos, almas gêmeas de verdade. Não entendo como isso acontece com pessoas tão felizes, que jamais fizeram mal a ninguém. Pelo contrário. Sempre foram caridosos.
   Então que eu a percebo, encostada no batente da porta. Elogia o cheiro do cafE Tenta parecer normal, mas ainda tem muita tristeza no olhar dela. O que se diz para aliviar a dor de perder alguém tão próximo como o marido era pra minha irmE Me sinto tão inútil. Desde que éramos crianças, eu a defendia. Dos garotos que a chamavam de feiosa e magricela quando criança, dos mesmos garotos, que quando cresceram a viram com outros olhos, mas não mereciam ela. E quando virou mulher, ela encontrou alguém que a defendia como eu. E fui seu padrinho quando se casaram.
   Ainda não entendo como alguém como ele iria se embebedar e depois dirigir em alta velocidade. É como se ele quisesse morrer. Não era do feitio dele. Nós tomávamos umas cervejinhas de vez em quando mas não o via como um alcólatra. Pelo contrário, ele era bem controlado e controlava também todos que bebiam com ele. Uma bebidinha não faz mal, mas embriaguez pode acabar com o seu casamento, dizia ele quando via alguém enxugando as garrafas.
Eu queria te abraçar, querida. Te olho agora, por olhos que não são meus. Sinto teu perfume delicado. E me dói saber que pode ser a última vez. Não imaginei que podia parar aqui, pra te rever.

   Quando me avisaram sobre meu estado atual, eu pensei em fazer loucuras que eu não havia feito em vida. Coisas que não experimentei por que achava errado. Ou por medo. Mas foi sEsentir teu corpo de novo para que eu percebesse o que devia fazer no fim do meu tempo no mundo. Vou cuidar de vocEe de nossos filhos.
    E quem sabe, ter teu amor mais uma última vez.


   Preciso me aproximar dela de novo. me sinto como o garoto que anos atrás, se declarou pra ela. Era túŠido, amava muito ela mas tinha medo de não ser correspondido. Talvez por pensar que uma garota tão linda como ela não iria querer nada com um cara tão simples como eu. Mas deu tudo certo. Eu tomei coragem num dia, fui atrás dela, comprei uma rosa e depois tudo foi natural. Nós estávamos destinados.
   Como eu poderia ficar perto dela de novo sem ter que usar um corpo do qual ela possa se atrair? Eu poderia usar uma garota. Mas eu não gosto daquela sensação constante que eu sentia. Não sei, acho que era menstruação. Nunca senti aquilo.
   Então eu preciso pensar em um corpo que eu possa usar sem sentir ciúme. Talvez eu possa usar o irmão dela. Eles eram tão próximos quanto nós, acho que dE Mas ele ainda Ehomem, não sei se me sentiria seguro. Quer dizer, se de repente eu agarro ela? Por que eu ainda a desejo muito e se o irmão dela sentir um pouco desse desejo, acho que o resultado pode ser catastrófico!
   Entro na sala, sento no sofEe vejo a pessoa certa. Um dos amigos do meu filho. É perfeito. Homem, com acesso a casa, jEconhece minha esposa e Ejovem. Demais pra poder acontecer algo além do que eu preciso.
   Por hoje, vou planejar o que fazer. AmanhEde manhE eu vou começar a usar o corpo do garoto. E o quEfazer, exatamente? A primeira coisa Edeixa-la Evontade com o garoto. Eu devia esperar pelo menos o luto, mas não sei se teria tempo depois. SEtenho um mês. Acho melhor começar logo mesmo.
   Eu posso começar conversando com ela. Puxar qualquer assunto. Ela sempre gostou de bater papo. Quem sabe eu consiga abordar o assunto ainda no mesmo dia. DaE eu preciso dizer a ela que estou bem, que não precisa se preocupar. E que ela precisa cuidar dos nossos filhos. Mas se eu disser isso, ela vai me achar um louco e ainda sem respeito pela morte do marido dela. Preciso me controlar. As palavras devem ser acalentadoras mas não pode transparecer que sou eu que estou dizendo.
   SerEque eu aguentaria conversar com ela sem abraçá-la e beijEla? Eu sinto vontade agora mesmo.
   Vou dormir agora. E amanhE vai começar.

@

   O dia estEparticularmente lindo. O céu estEazul, sem nuvens. Uma brisa suave entra no quarto. E eu estou num corpo perfeito pra me aproximar de minha esposa. O que pode dar errado?
   Eu vou visitar meu filho. Tinhamos marcado de assitir a um filme que ia passar na TV. Ele tEprecisando ficar mais calmo. Lembro que eu ia assistir esse filme com ele. SEque eu não posso fazer isso, não fisicamente. Eu morri. SEposso assistir usando o corpo de outra pessoa.
   A tarde passa e eu sEconsigo pensar nela. Meu filho estEbem, jEestEmais calmo e parece que vai aguentar. Mas ela... Ela parecia péssima. Eu não aguento saber que ela estEtão triste.
   O filme acabou. Eu ouço o trinco da chave girar ruidoso. Ele ainda emperra. Devia ter arrumado. Mas eu sempre dizia pra esquecer, isso não era importante, afinal, a chave ainda entra. Eu devia ter consertado!
   É ela. Nos diz boa tarde rapidamente e vai pra cozinha dizendo que o jantar fica pronto daqui a pouco. Ela sempre fazia isso. Chega em casa, nos avisa que vai fazer o jantar e nos serve aqueles banquetes que ela fazia questão de servir todos os dias. Eu nunca pude reclamar de sua comida. Ela sempre cozinhou como um verdadeiro chef.
   Não consigo pensar em outra coisa senão em vEla e sentir seu perfume no pescoço. O cheiro delicado de rosas. Ah, como eu sou apaixonado por ela.
   Preciso ficar um pouco mais perto dela. Invento que vou beber água. Me levanto e vou em direção Ecozinha. Sinto algo estranho, um certo pavor. Me aproximo da porta e vejo aquela silhueta feminina, posta a frente da pia, cortando algo na tábua. Me perco naquelas curvas. Vejo o quadril dela balançar suave a cada corte. Seus cabelos correndo as costas como uma cachoeira castanha, suave. Ela levanta um pouco um dos pés, dando mais suavidade ainda àquele momento. Eu quase esqueço de minhas limitações.
   Me aproximo calculista. Quando ela me percebe, tenta ser prestativa como sempre e pergunta se eu quero alguma coisa. Intintivamente eu pego um copo e começo a me servir de água. Fico nervoso e não sei o que dizer. Fecho a torneira atEparar, abro mais um pouco e fecho apertado desta vez. Como eu fazia quando vivo. Eu percebo meu deslize. Olho em sua direção e sei que ela também percebeu este detalhe. Talvez pense ser sEparanóia.
   A água parece whisky. Desce grossa, queimando. Meu estômago revira e parece querer se abrir. Eu a vejo me olhar beber. E isso me deixa mais impaciente. Escorre um pouco de água pelo canto de minha boca. Eu limpo podo a mão na boca e balançando a cabeça. Eu sempre fiz isso. Mas neste momento foi um deslize! Ela percebeu e me olha com os olhos quase lacrimejantes.
   Eu pergunto o que aconteceu, tento acalmEla. Ela deve estar se sentindo ridú€ula vendo estes pequenos detalhes e lembrando de mim. Mas prefere me dizer que não Enada. Que sElembrou do marido falecido.
Deve estar sendo difú€il pra ela. Não sei exatamente como poderia diminuir esta dor. Eu sEpasso a mão em suas costas, suave. E depois me lembro que era isso que eu fazia pra acalmEla antes. Tiro a mão dela assim que percebo. Ela se vira com um olhar de espanto. Eu não devia ter feito isso. Saio depressa da cozinha e a deixo lE sozinha com sua confusão.
   Sou convidado a jantar. Sentir o sabor daquela comida mais uma vez Ecomo se eu estivesse vivo de novo. E estão todos a mesa. Meus filhos, minha esposa e eu, sentado em minha antiga cadeira. Percebo que estou sendo observado. Isso me deixa nervoso. Não consigo disfarçar meus jeitos. Por que ela não pára de me olhar? Assim eu não consigo fingir que não sou eu.
   Termino o jantar e minha esposa tira a mesa. Meu filho me chama e eu penso em ir embora. JEfiz besteiras demais por hoje. Mas quando vou me despedir, ela me diz que precisa falar comigo.
   Vamos Esala vazia. Sentados no sofE ficamos atônitos nos olhando. Pergunto o que hE E ela me diz que percebe algo diferente em mim. Diz que nunca havia percebido isso.
   Nos conhecemos a tanto tempo, vocEEamigo de meu filho a tanto tempo, diz ela com um olhar temeroso. VocEparece ter algo de meu marido. Algo que eu não prestava mais tanta atenção. Ela diz que estEconfusa com isso. Eu consigo ouvir seu coração, batendo no mesmo ritmo de quando nos amávamos. Penso em beijar aqueles lábios macios e saborosos. Aproximo meu rosto e ela fecha os olhos. Não posso me conter.
   E a beijo.

   Ainda fico pensando na besteira que fiz! Beijar minha esposa daquele jeito. Ela deve me achar louco. Mas eu não estou acostumado ao fato de que estou em outro corpo e perto dela eu sinto anseios, preciso fazer. Eu a amo muito e não posso evitar.
   Aquela besteira que fiz me tirou uma grande chance. Eu a conheço, sei que ela deve estar se trancando agora, não vai deixar ninguém se aproximar novamente. E este corpo principalmente. Devia sair dele então e tentar alguma outra pessoa. Se eu me controlar, posso tentar algum de nossos filhos. Ou os pais dela.
   A quem eu quero enganar. Não posso me controlar ao vEla, tão delicada, seu olhar me distraindo da realidade. Eu a amo mais que qualquer corpo possa conter.
   Como ela estarE Eu gostaria de saber como ela encarou isso. Mas não posso voltar no corpo dela. Não Ecerto. Invadir sua privacidade. Quando nos casamos prometemos nunca fazer isso. Mas...
   O que aconteceu comigo? SerEque eu enlouqueci. A morte do meu marido não devia me afetar assim. Um garoto. Eu beijei um garoto. Como pude fazer isso? Deus...
   SerEque Emesmo somente algum efeito decorrente da minha perda? SerEque Eisso? Eu quis ser amada pra suprir a falta que eu sinto?
Oh, meu amor, por que vocEtinha que me fazer uma coisa dessas? Eu estou tão desnorteada sem a sua força por perto. Por que a gente não viveu atEnossos últimos dias juntos? Nós viviamos dizendo que iriamos morrer velhinhos, juntos em nosso leito de amor. Eu preciso de vocEao meu lado.
   E pensar que tudo aconteceu por que eu fiz aquela besteira. Nossa vida era tão perfeita. Não sei por que fiz uma coisa dessas. Eu sou a culpada, a única culpada por sua morte, meu amor! Fui eu que te levei a morrer aquela noite! VocEnunca devia ter passado por aquilo!
   Tudo ia tão bem que eu desejei que algo desse errado. Precisava violar a perfeição que era minha vida. Nunca mereci a vida que vocEme deu. Eu não podia.
   Um marido lindo que me deu três belos filhos. Cirurgião famoso, mas nunca ocupado demais pra famú‰ia. E sempre mimando as pessoas que amava. E ainda era muito generoso, participou de dezenas de campanhas para ajudar os mais desfavorecidos. Ajudava os amigos em tudo e nunca pediu nada em troca. Sempre que se deitava ao meu lado me dizia - eu te amo, querida. Por tudo que vocEE
   Eu nunca mereci ser amada desse jeito!
   VocEmorreu por minha culpa! Eu te assassinei sem usar armas. E te destrui pelo seu ponto fraco. O coração.
   Eu não consigo acreditar que ela fez isso. Eu não consigo acreditar. Ela Eperfeita. Essas coisas não acontecem com pessoas que se amam como nós nos amamos! Não pode ser. Como eu não lembrei?
   Naquele dia, eu tinha trabalhado muito. Cheguei em casa e percebi que minha esposa não estava. As crianças jEdormiam. Fui ao nosso quarto e vi sua agenda aberta. Não pude deixar de notar aquela anotação. SEbati o olho enquanto as páginas se fechavam mas pude sentir.
   Quando eu a encontrei, sabia o que ia ver sEde ouvir as vozes. A porta estava entreaberta e eu a vi. O meu mundo começou a ruir. Ela me traiu.
   Ouço sua voz suave implorando por violência, suas mãos delicadas tocando outros homens, o corpo suado se movimentando freneticamente como fazia em mim. E a várias noites ela jEme parecia cansada. Vinha fazendo esse horror a tanto tempo que talvez nem ela saiba mais quando começou.
   A porta se escancara e três rapazes procuram se esconder. O olhar dela me distrai da realidade uma última vez. Depois, essa mesma realidade destroi minha vida. Nada parece fazer sentido. Ela chora lágrimas vazias e me pede perdão. Não sabe o que estEfazendo. Ela diz que nunca devia ter feito isso e eu perco o controle. Pela primeira vez minha mão a toca com força, num tapa que a joga contra o chão. Pergunto se não sabia o que estava fazendo quando cavalgava aqueles dois. Pergunto se não sabia o que fazia quando sugava mais um, completando aquela orgia.
   Digo que jamais verEmeus filhos novamente, que não adianta chorar. Súplicas não mudam minha opinião. Desde o dia em que dei aquela rosa quando éramos crianças, eu sEpedi uma coisa pra ela. SEpedi que sempre fosse sincera comigo. Que se o amor acabasse, eu fosse o primeiro a saber.
   Sem ela, eu perco meu eixo. Não sei o que fazer. Então talvez seja melhor não fazer nada. Talvez seja melhor largar a garrafa. E seja melhor largar o volante também. Eu nunca pedi demais de minha vida. E se eu não posso ter nem isso, então não preciso de vida.
   Enquanto o carro se aproxima da parede, eu penso: se Deus realmente existe, ele vai ter que me dar uma grande explicação.

continua...